A Influência dos Vídeos no Vocabulário Infantil
O gatilho para esta análise veio de um comentário da professora Recy Freire, que tem notado uma preocupante tendência entre seus alunos de 7 a 10 anos. Ela percebe que muitas crianças apresentam dificuldades com ortografia, possuem um vocabulário reduzido e enfrentam desafios na interpretação de texto. Recy acredita firmemente que a leitura é essencial para a aquisição de vocabulário e para a melhoria da capacidade de interpretação de texto.
No entanto, ela observa que essas crianças parecem não estar desenvolvendo o hábito de leitura, possivelmente por falta de incentivo em casa. Embora Recy não tenha nada contra a tecnologia ou o uso de telas – compreendendo que muitas vezes os pais recorrem aos tablets para ganhar tempo –, ela sente que essa geração está ficando carente em termos de expressão verbal e escrita. Ela relaciona essa carência ao tempo excessivo que as crianças passam assistindo vídeos no YouTube e consumindo conteúdo rápido e produzido para as redes sociais.
O Valor da Linguagem e a Crítica ao Elitismo Linguístico
Paralelamente às inquietações de Recy, surge uma reflexão sobre o valor que atribuímos à ortografia, ao vocabulário e à leitura, e se essa valorização não carrega um viés elitista. O filologista brasileiro Marcos Bagno, autor de obras como “A Língua de Eulália” e “O Preconceito Linguístico”, nos convida a reconsiderar esses julgamentos.
Minha própria experiência pessoal reflete essa questão: minha avó, que se alfabetizou aos 40 anos, tinha um vocabulário mais simples e um sistema gramatical mais básico devido à falta de acesso à escolarização formal. No entanto, a ausência de estudo não desqualificava suas palavras nem sua experiência de vida.
Será que, ao valorizar excessivamente a leitura e a escrita formal, não estamos caindo no preconceito linguístico apontado por Bagno? Ao escrevermos sobre a infância e o desenvolvimento linguístico, como no caso do livro “A Infância de Gepeto”, corremos o risco de adotar uma perspectiva elitista que desvaloriza outras formas legítimas de expressão e conhecimento.
O Processo
Refletindo sobre todas essas questões, decidi perguntar à minha filha, Diana, de 10 anos, quais são os canais do YouTube que ela mais assiste. Ela me forneceu uma lista com cinco canais, e eu decidi analisar os dois vídeos mais recentes de cada um desses canais. Embora um dos canais seja em inglês, traduzi o conteúdo para o português para manter a consistência da análise.
Notei que a duração dos vídeos variava, com alguns tendo seis minutos e outros chegando a vinte minutos, mas decidi não me ater a essa diferença, já que meu objetivo era fazer uma análise inicial do vocabulário usado. A pergunta que me guiou foi: o que esses dez vídeos do YouTube revelam sobre o vocabulário que as crianças estão absorvendo?
Não procuro respostas definitivas, mas sim explorar e entender melhor a influência desses conteúdos, sempre lembrando que cada criador está fazendo o melhor dentro de suas possibilidades. Essa análise é um convite para um diálogo mais amplo sobre como nossas crianças estão desenvolvendo suas habilidades linguísticas e de compreensão de texto.
Para realizar essa análise de vocabulário, fui ao YouTube e baixei a transcrição desses dez vídeos. Em seguida, utilizei as ferramentas da OpenAI e do ChatGPT para listar as 500 palavras mais usadas, focando em substantivos, adjetivos, verbos e advérbios, excluindo preposições, artigos e conectores.
Com essas transcrições em mãos, pedi para gerar um documento que contivesse as 500 palavras mais usadas em cada vídeo. Depois de obter essas dez listas, solicitei uma análise adicional para identificar as 500 palavras mais comuns entre os dez vídeos. Esse processo em duas camadas resultou em um arquivo final, destacando essas palavras mais frequentes.
Para visualizar os resultados, criei uma nuvem de palavras. Esse exercício levanta várias questões: O vocabulário dos vídeos reflete o que consideramos adequado para o desenvolvimento linguístico das crianças? Como essas palavras se comparam ao vocabulário adquirido através da leitura? E, mais importante, o que essa análise nos revela sobre as influências modernas no aprendizado das nossas crianças?
Durante essa análise, lembrei que não considerei vídeos de tamanhos uniformes e não limpei a base na primeira iteração, o que resultou em possíveis duplicidades como “São Paulo” se transformando em “São” e “Paulo”. Essa análise foi mais um rascunho, um esboço inicial para identificar as palavras mais recorrentes. Não excluí pronomes, pois muitos vídeos de YouTube são narrados em primeira pessoa, o que justifica a presença frequente de pronomes como “eu”.
Com as 500 palavras em mãos, pedi ao ChatGPT para reescrever um trecho de “Dom Casmurro”, meu livro favorito de Machado de Assis, utilizando esse vocabulário. A escolha do livro foi puramente pessoal, sem nenhuma razão específica além da minha admiração por Machado de Assis.
O resultado foi um texto que, apesar de inspirado em um autor tão eloquente, apresentou um vocabulário relativamente limitado, refletindo as palavras mais usadas nos vídeos analisados. Esse exercício não apenas ilustra o vocabulário presente no conteúdo que as crianças consomem, mas também levanta questões sobre o impacto desse vocabulário em seu desenvolvimento linguístico.
O Texto
Memórias Adaptadas de Brás Cubas Capítulo I: Início
Eu, Brás Cubas, escrevo esta memória. Eu falo de minha vida aqui. Muito aqui para contar. Eu sou feliz? Não sei.
Capítulo II: Infância
Minha infância foi boa. Minha mãe era amor. Meu pai, severo. Nós, crianças, brincávamos muito. Mas também aprendíamos. Escola, casa, escola. Um ciclo.
Capítulo III: Amor
Eu vi Marcela. Linda, doce. Eu amei Marcela. Mas ela não. Marcela amava riqueza. Eu, um tolo.
Capítulo IV: Vida Adulta
Vida passou. Trabalho, amigos, festas. Muitos momentos bons. Alguns, nem tanto. Buscava algo. Nunca achei.
Capítulo V: Fim
Agora, escrevo do além. Reflito sobre tudo. Vida é breve. Muito breve. Memórias, só memórias. E nada mais.
Imaginações Limitadas e a Importância das Palavras
O comentário da Recy revela um receio profundo: a redução do vocabulário e a chamada “burrificação da língua” podem levar a uma estratégia de governança, onde um grupo de pessoas com vocabulário limitado se torna mais fácil de controlar, perdendo sua capacidade crítica por falta das ferramentas necessárias – as palavras. Ela chama isso de idiotização, uma transformação que empobrece o pensamento.
Para mim, essa redução impacta diretamente a imaginação. Quando lemos ficção científica, por exemplo, somos apresentados a palavras para coisas que ainda não existem, porque a língua é viva e essencial para a criação. A língua falada difere da escrita, mas ambas são cruciais para expandir nossos horizontes.
Como disse Guimarães Rosa, “se existe a palavra, existe a coisa”. Expandir nosso vocabulário é, portanto, ampliar nossa imaginação, criar novas metáforas cognitivas e enriquecer nossa capacidade de expressão. Insistir na expansão do vocabulário é insistir no poder de criação e na possibilidade infinita de novas ideias. É através das palavras que podemos não apenas descrever o mundo, mas também sonhá-lo e transformá-lo.